Relatório
nº 1
3ª
Feira, o primeiro do mês de Verão.
A
casa localizava-se na vila, na zona circundante ao lago. Era pequena,
exteriormente tinha apenas uma porta e, quase colada a esta, uma
janela. Não havia cortinados nem portadas. Qualquer um podia
espreitar. Foi o que fiz. A escuridão era tal que não tinha sequer
a percepção de móveis ou de uma porta que ligasse a outro
compartimento. Era vazio. Aguardei. Tinha chegado demasiado cedo. Das
7h30 às 9h pouco ou nada podia fazer. Aguardei.
Não
era isto que eu tinha imaginado. Por detrás do véu, afinal, nada
havia para ver, nada havia para ser dito. Grito em chamas dentro de
mim no silêncio da madrugada. É cedo demais para tudo o mais.
Deixo-me
cair. Nestes últimos três dias tenho andado com a tensão alterada.
Sinto-me leve, oiço um zumbido. Elevo-me. Ainda bem que cheguei
cedo, assim a minha fraqueza manter-se-á anónima.
Corredores…
corredores… toda a minha vida foi feita a percorrer corredores. Os
meus pensamentos, as minhas angústias, os meus desejos estão
inscritos neste soalho… tinha tanto para ser. Chorei tanto por
querer. Agora percorro-os novamente. Não há nada de novo. Excepto
em mim. Surpreendo-me constante mente por me deixar permanecer neste
estado de pulsão bombardeante. A sensação será eterna?
Invoco
cânticos. Mentalmente, nunca tive a menor aptidão para as artes.
Que palavras são estas que ecoam sem cessar como um chamamento? O
melhor será descansar um pouco mais… ainda é cedo.
Oiço
o cantar do primeiro melro. É o amanhecer.
Nunca
quis ser nada. Ou seja, desde que nasci que a minha mãe afirma que
sempre fui uma criança muito sossegada, amorfa. Nada me espantava,
não tinha iniciativa mas sempre fui cumprindo as minhas tarefas.
Lembro-me de aos 13 anos ter dito: “Quero ser cavaleiro!” –
“Que disparate! Como se algum dia pudesses ser isso… que
imaginação!” – E a partir daí deixei de querer.
O
silêncio. É tão bom o silêncio da madrugada. As cores inundam o
mundo. É tão bonito. Tudo renasce. Sinto a vida. Sinto-me respirar…
sinto-me respirar! Sinto-me respirar!
Onde
estou? Acho me deixei adormecer. Sim, cheguei cedo. Muito cedo. Nada
vi. Nada ouvi. Não se consegue ver. Que poderia eu fazer? Como? Mas
sem autorização é impossível!
Não
me permitem que seja. Parece que de alguma forma tudo está
condicionado. Previamente delineado sem o meu consentimento. E isto
como? Se a vida é minha… ou assim o suponho.
Sinto
vertigens… sinto o suor escorrer-me pelas têmporas. Respiro com
dificuldade. Mas que fazem estes crápulas? Não me sinto bem…
Rodopio!
Rodopio! Rodopio! Rodopio!
Tiro
o lenço de mão do bolso do casaco. Passo-o pela testa. Estarei
febril?
Deixo-me
cair! Que bela é a tontura! Que bela é a vertigem!
Oiçam,
as leis têm que se cumprir. Se há regras temos que as seguir. Não
podemos agir assim!
Depois
vem o enjoo. Li uma vez que o enjoo está sempre presente quando há
o abandono.
Tiro
novamente o lenço. Desta vez passo-o pelo pescoço. Desaperto os
primeiros botões da camisa.
Toda
a preparação tem o seu ritual. Faço tudo com calma. Mas por dentro
sou explosão.
Qual
nervosismo qual quê? Mas o vosso modo de agir a mim não me agrada.
E terei necessariamente que apresentar um relatório sobre esta
situação, anexarei os meus comentários pessoais.
Sinto
a garganta seca.
Já
todos os passarinhos despertaram. Está na hora.
Não,
não estou doente, sinto-me até muito bem. O sol é que está
demasiado forte e, como já vos disse e repito, não tenho por hábito
fugir ao cumprimento dos deveres.
Corredores…
corredores… corredores… corredores…
Ser
cavaleiro! Que disparate, como poderei um dia ter pensado tal coisa.
A
vertigem! Sinto a vertigem!
As
regras existem.
Já
não respiro.
O
sol está tão forte!
Deixo-me
cair.
Entoo
cânticos.
Estou…
neste soalho.
Tenho
a boca seca…
Tudo
tem um ritual.
Deixo-me
cair.